
Em 26 de fevereiro de 1896, nasceu o pintor Alberto da Veiga Guignard, em Nova Friburgo, RJ. De 1944 até sua morte, em 26 de junho de 1962, ele viveu em Minas Gerais, cuja paisagem montanhosa dominou suas telas, habitadas pelas igrejas coloniais. A Secretaria de Estado de Cultura mantém o Museu Casa Guignard, em Ouro Preto. Em homenagem ao criador da Escola Guignard, da UEMG, publicamos um artigo do secretário Angelo Oswaldo sobre a obra do mestre.
Pagodes e igrejinhas na montanha
Angelo Oswaldo de Araújo Santos
O pintor Alberto da Veiga Guignard nasceu em 1896, em Nova Friburgo, RJ, cidade encravada na Serra do Mar. A montanha esteve sempre no seu horizonte. Neto de um pâtissier suíço-francês, fornecedor da nobreza do Segundo Reinado, era filho de uma brasileira descendente de família tradicional, com ramificações fluminenses, paulistas e mineiras. No Rio de Janeiro, a partir de 1929, quando retornou de longa temporada na Europa, Guignard vivenciou o espetáculo cotidiano do diálogo entre a montanha e o mar, que se faz presente em inúmeras de suas obras. Destacam-se os painéis em que ele enfatiza a flora exuberante do trópico, em meio à qual se descortina uma visão encantada do Rio. (Coleção Sérgio Fadel)
Na Serra da Mantiqueira, em Itatiaia, RJ, teve oportunidade de pintar paisagens montanhosas (Acervo MNBA), e se comprazia em demorar na região, que guarda um pequeno chalé inteiramente ornamentado pelo artista, para o qual o suporte da pintura poderia ser um forro, uma porta, um biombo, uma cama ou um violão (Acervo Museu Casa Guignard, Ouro Preto). A montanha sempre foi uma paixão, e esta iria abraçá-lo por inteiro, quando tomou a decisão de deixar o Rio. Importa frisar que Guignard partiria para Minas Gerais com uma ideia de montanha arraigada no seu sentimento e no seu gesto criador.
A Serra dos Órgãos, com o impactante Dedo de Deus, por entre picos e píncaros pontiagudos, braço da Serra do Mar em que se aninha o berço natal do artista, o relevo aguçado das agulhas negras da Mantiqueira, na região de Itatiaia – em tupi, ensina o vocabulário de Silveira Bueno, quer dizer a montanha de pedras agudas, eriçadas como pontas –, e os volumes cônicos do litoral, como o Pão de Açúcar, os Dois Irmãos e o Corcovado, deram ao artista os ícones da montanha que se projetariam para o resto da vida em sua pintura. Montanhas vertiginosas, escorrendo do céu, precipitadas por entre brumas e névoas, formas expressionistas do espaço mágico em que flutuariam outros signos emblemáticos do autor, como igrejinhas e balões juninos. O espectro gasoso do ambiente da serra fluminense impregnou-se na pintura. Fundem-se as construções de nuvens e montanhas. A paisagem poética integra os montes na atmosfera vaporosa das névoas e neblinas, confundindo céu e terra.
Em 1944, Guignard mudou-se para Minas, que já visitara antes, no curso de rápidas viagens. A convite do então prefeito de Belo Horizonte, o futuro presidente Juscelino Kubitschek, por sugestão de Rodrigo Melo Franco de Andrade, primeiro diretor do IPHAN, ele criou uma escola de arte, que funcionava no Parque Municipal, no centro da capital mineira. Os poetas paulistas Mário e Oswald aplaudiram a iniciativa, escrevendo rasgados elogios ao artista e ao prefeito. Guignard gostava de lecionar ao ar livre, pelas alamedas do Parque, e utilizava, como apoio, os escombros do Teatro Municipal, uma construção abandonada, que só seria concluída em 1971, com o nome de Palácio das Artes. As árvores do Parque exerciam grande fascínio sobre o mestre, assim como já o encantara o Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Belo Horizonte se havia dividido, sob o impacto da arquitetura inovadora de Oscar Niemeyer e da pintura de Cândido Portinari, às margens da lagoa da Pampulha, ousada empreitada do prefeito Kubitschek, logo no início de sua gestão (1940-45). Uma escola de arte moderna serviria para educar o olhar dos mineiros para o modernismo que, se ali produzira a poesia de Carlos Drummond de Andrade, no campo das artes plásticas até então permanecera praticamente sem referências que tivessem familiarizado o gosto local com as estéticas do século 20. A presença em Belo Horizonte aproximou Guignard das cidades históricas. Em companhia da escritora Lúcia Machado de Almeida e de Antônio Joaquim de Almeida, criador do Museu do Ouro – tendo morado certo tempo na residência do casal, à rua Tomé de Souza –, passou a frequentar a cidade vizinha de Sabará, logo entregando-se a Ouro Preto, onde viria a ser sepultado, em 1962.
A paisagem montanhosa de Minas seduziu Guignard, ao ponto de seu desenho prescindir da linha da montanha, para surpreendê-la nos contrapontos edificados que se espalham sobre o papel, como as palavras na constelação poética de Mallarmé. A montanha se vê sem ser vista. Não era o que aspirava Cézanne, diante da Sainte-Victoire, no Sul da França, conforme argumenta Merleau-Ponty? O “mar de montanhas” é uma expressão da geografia que designa o relevo do Quadrilátero Ferrífero, no centro de Minas Gerais. São zonas em que as ondulações azuis das serranias, observadas de altos cumes que dominam a paisagem, proporcionam ao olhar a sensação de um oceano cujas vagas se agitam em sensual movimento. Guignard fundiu céu e montanha, ao tratar as nuvens e os morros com a técnica do esfumato leonardesco. Tomou as serras como mar, singrado pelas naves das igrejinhas que navegam na imagem, tal como os balões juninos se elevam para chamar as nuvens e entregá-las aos serros (capa do “Passeio a Diamantina”, de Lúcia Machado de Almeida, Martins, 1960).
Essa percepção da montanha revela que a ótica de Guignard já se afeiçoara a sensações semelhantes às que o artista oriental experimenta ao captar a energia estética dos maciços orográficos na composição da paisagem e nos cenários recortados pelo gesto criador.
montanha vazia não se vê ninguém
ouvir só se ouve um alguém de ecos
raios do poente filtram na espessura
um reflexo ainda luz no musgo verde
Wang Wei, pintor e poeta clássico chinês (701-761), nesta obra “reimaginada” pelo poeta e transcriador Haroldo de Campos, pode ser tomado como tradutor do clima de uma pintura guignardiana, na qual a montanha é nuvem, é cambraia, é luz. Guignard trouxe da Europa o conhecimento e o gosto da arte oriental. Dela acercou-se nas lições que recebeu e na visita a museus e coleções, de tal modo que é possível cotejar algumas de suas criações com grafismos e elementos da tradição da pintura chinesa, como fez Paulo Herkenhoff em estudo para a primeira mostra sobre o tema em Guignard.
Os orientalismos presentes no acervo colonial de Minas estimularam, intensamente, essa propensão do artista fluminense. Os galbos de contrafeito, que conferem ao telhado mineiro delicado e elegante caimento das águas, à maneira dos pagodes levantinos, guiam o desenho de Guignard. Com o lápis de ponta grossa ou o pincel, ele risca, de um só gesto, o espigão do telhado, assim como levanta o coqueiro, em linha contínua, prontamente ereto. Os pequenos balões de São João, leves como os pagodes, soltam-se na folha branca. Atravessam o espaço pictórico e fazem flutuar o mundo mágico que ali se instala. (Coleção Priscila Freire)
Na cidade de Sabará, em especial, registram-se expressões admiráveis das chinoiseries que encheram de magia a imaginação dos mineradores setecentistas. A Capela do Ó, dedicada a Nossa Senhora da Expectação do Parto, e assim denominada em alusão às exclamações da Ladainha – O Maria semper Virgine, O Maria mater Dei... –, foi construída como um ex-voto, no início do século 18. Além do aspecto de pagode figurado pela arquitetura, a ornamentação do curioso templete, em vermelho de Macau e douramento, constitui a mais rica e original manifestação da influência oriental na arte colonial de Minas Gerais, igualmente marcante na Matriz de Sabará.
Na Sé Catedral de Mariana, precisamente no respaldo do cadeiral dos Cônegos e no armário do órgão Arp-Schnitger, bem como na Igreja de Santo Amaro do Brumal, em Santa Bárbara, encontram-se notáveis decorações com chinesices, mas a chamada Igrejinha do Ó não tem similar. Guignard a desenhou para ilustrar o “Passeio a Sabará”, de Lúcia Machado de Almeida, publicado pela Martins, em 1952, no qual se esclarece que a construção de 1719 se deveu a uma promessa do capitão-mor Lucas Ribeiro de Almeida.
Sete painéis de madeira emoldurados no arco-cruzeiro, três de cada lado e um sobre o fecho do arco, são apresentados em forma de cartela, sendo decorados com pintura a ouro sobre fundo vermelho. Pequenos pássaros e pagodes aparecem nas cartelas, tal como as igrejinhas e balões nos desenhos guignardianos. Segundo Sylvio de Vasconcellos, “conhecidas como ‘chinesices’, estas pinturas talvez tenham sido recolhidas da louça de Macau, bastante usual no Brasil de então, sendo de observar-se sua ocorrência frequente em Minas Gerais, ao passo que no resto do país não são encontradiças”.
Cabe lembrar que o órgão alemão da Sé marianense saiu de uma das capelas reais do antigo Paço de Lisboa, em 1753, quando Dom José I resolveu presenteá-lo ao primeiro bispo de Minas, Dom Frei Manuel da Cruz, já trazendo as chinoiseries policromadas nas portas do “buffet”. O modismo era recorrente em todo o império português, sendo completado pela influência indiana das artes de Goa, especialmente a estatuária de marfim, que caracterizou a iconografia brasileira da Senhora da Conceição na segunda metade do século 17, como se verifica na própria imagem da padroeira do Brasil, a Conceição Aparecida, encontrada por três pescadores, em 1717, no rio Paraíba do Sul.
Uma escultura em madeira policromada, que representa Santa Cecília, padroeira dos músicos, por isso segurando uma lira, lembra uma mulher chinesa, no acervo do Museu Arquidiocesano de Mariana. No Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, duas figuras de presépio, atribuídas ao Aleijadinho, ostentam penteados à maneira oriental, assim como chinesices podem ser identificadas na Santa Luzia que o mestre esculpiu para a Matriz de Nossa Senhora do Bonsucesso, em Caeté. Os olhos amendoados de inúmeras esculturas decorrem do gosto oriental que prevaleceu na arte do século do ouro.
A contemplação desses curiosos motivos terá causado forte efeito sobre a maneira lúdica pela qual Guignard recria a paisagem mineira. Muitas vezes, ele próprio insere-se na cena, junto a seu cavalete e uma bandeirinha do Brasil, tornando-se partícula do mundo montanhoso no qual – significantes históricos de Minas – trenzinhos saem de tuneis, balões sobrevoam encostas e igrejinhas celebram a vida serena nas alturas (Coleção Ângela Gutierrez). Há uma sugestão de presépios como o do Pipiripau, criado pelo marceneiro Raimundo Machado, na Belo Horizonte do início do século 20, hoje tombado pelo Estado, tema de um poema de Drummond, quando ainda assinava sob o pseudônimo de Antônio Crispim.
São ideogramas que caracterizam uma escrita pictórica e a temática que levou Guignard a dar o título de “Fantasia” e “Paisagem imaginária” a várias de suas obras. Numa relação prazerosa com a paisagem, o pintor absorve a montanha em seu universo onírico, brincando com os signos sobre o fundo dramaticamente construído de nuanças esvanecentes, entre o céu e a terra. Comprazia-se tanto com as paisagens de sonho que sempre as descortinava no fundo de seus retratos. O poeta Drummmond contestou a artista plástica Madu (Maria do Carmo Vivacqua Martins), ao dizer-lhe que “Minas não é uma palavra montanhosa”, por ser “palavra abissal”. As montanhas de Guignard são verticais, abandonam a horizontalidade, deslizam. Abissais, são portadoras de alcantis dissolutos e abismos, entre cúmulos e cumes.
Pesquisa realizada pelo Centro de Conservação e Restauração de Obras de Artes, CECOR-UFMG, e publicada sob organização de Claudiana Maria Dutra Moresi, contribui para que se possam investigar, em pormenores científicos, as cores, técnicas e materiais da obra de Guignard. São informações que permitem uma leitura clara do estilo do artista e das possibilidades de conservação e restauro de seus trabalhos. Nessa perspectiva, acentuam-se as qualidades criativas do desenhista e pintor, com pleno domínio de seu métier.
O desenho e a pintura de Guignard referem a atmosfera das chinoiseries que ele apreciava com tanta satisfação, mas encontram ligações mais aprofundadas com os orientalismos. De início, pode-se evocar a delicadeza com que pintava, quase aquarelando camadas diáfanas, como se buscasse o ar rarefeito das altitudes, a brisa suave e o jogo de luzes, tal como de certo modo revela o mexicano Luís Nishizawa, de ascendência japonesa, ao pintar as montanhas de seu país. Mas Guignard entrega-se ao sonho e ao devaneio, não se atém à paisagem observada, porque invariavelmente a subverte, recriando-a. Essa surpresa, entre o encantamento e a magia, a ingenuidade e a fantasia, faz com que a obra do mestre tenha tanto o fascínio quanto o alumbramento de uma pintura sobre papiro de antigas dinastias do Oriente.
Priscila Freire, que trouxe para o século 21 o Museu de Arte da Pampulha, em Belo Horizonte, conheceu Guignard, que fez o seu retrato e lhe deu um lindo desenho, no qual ele, junto ao cavalete, admira um panorama de Ouro Preto. Deve-se à sensibilidade de Priscila Freire a sugestão de se levantar e apresentar ao público o colóquio entre Guignard e o Oriente. Ao lado de Paulo Herkenhoff, ela realizou plenamente a esplêndida ideia, para o privilégio dos visitantes da mostra que ocorreu no MAR, no Rio de Janeiro, em 2014.