Do caos também nasce inspiração. Partindo desse pressuposto, artistas de vários segmentos vêm usando a terrível tragédia ocorrida em Mariana e que afetou o Rio Doce no ano passado como inspiração para suas criações. No papel, o poeta gaúcho Carlos Nejar inscreveu suas palavras que originaram o livro "A vida de um rio morto". Nas artes visuais, Elias Layon pinta o retrato do caos causado pela lama de minério. E no formato vídeo, fotos e instalação, o Museu de Congonhas debruça-se sobre o tema com exposição do artista sul-africano Haroon Gunn-Sali.
Nejar canta a morte do rio
Um exemplar do livro “A vida de um rio morto – monumento ao Rio Doce”, contendo o poema de Carlos Nejar, passa a integrar a Coleção Mineiriana, da Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais. O secretário de Cultura, Angelo Oswaldo, colheu o autógrafo do autor, no lançamento realizado no espaço cultural Idea, dizendo que “a obra do poeta gaúcho radicado no Espírito Santo torna-se uma contribuição singular ao repertório bibliográfico de e sobre Minas Gerais, ao cantar a morte e vida do Rio Doce”.
No espaço Idea, Carlos Nejar, membro da Academia Brasileira de Letras, leu trechos do poema, juntamente com seu filho, o poeta Fabrício Carpinejar, e ambos debateram com o auditório questões ligadas ao livro, à poesia e a literatura em geral. “A vida de um rio morto” acaba de ser editado pela Ibis Libris, do Rio de Janeiro, e traz como ilustração desenhos de Pablo Picasso ligados à concepção do painel sobre Guernica.
Para Antônio Carlos Secchin, Nejar é “verbo porta-voz dos ventos, dos abalos sísmicos, que se alça ao tom profético e místico”. Nessa direção, corre o longo poema sobre o desastre ambiental de Bento Rodrigues e a tragédia que devastou o Rio Doce, cujas consequências alcançaram o Espírito Santo, terra de adoção do poeta. Carlos Nejar escolheu uma forma pouco usual na poesia brasileira, a dos dísticos (estrofes formadas por um par de versos), “seguindo a lição de Homero”. Observou, com Hegel, que “a poesia épica é a dos monumentos”, e compôs essa ode à vida do rio morto.
Cara e coragem, segundo Layon
O pintor, escultor e entalhador marianense Elias Layon pintou uma série de máscaras em referência ao acidente de Bento Rodrigues. Sobre o trabalho do artista, escreve Angelo Oswaldo: “O terremoto de Lisboa aconteceu no dia de Todos os Santos, 1º de novembro de 1755. A tragédia de Mariana, no dia nacional da Cultura, 5 de novembro de 2015. Voltaire escreveu sobre o desastre português, pelo qual Minas Gerais pagou caro, para questionar os desígnios da Providência. Mas, se os santos não puderam evitar o tremor e o tsunami em Lisboa, a cultura consegue resgatar a consciência dos mineiros em meio à convulsão que, a partir do velho arraial aurífero de Bento Rodrigues, estremeceu a bacia do rio Doce e invadiu o Atlântico.O artista plástico Elias Layon, de Mariana, pinta a face trágica dos afogados na lama de minério. Caras de barro barroco emergentes no plasma do caudal, rostos patéticos enlameados no desespero, plástica de minerais conjurados na torrente dramática da morte.Layon vem pintando, há anos, rostos de Cristo, e centenas de imagens formam essa surpreendente coleção de verônicas. Agora, ele retira do Gualaxo e do Piracicaba, do Carmo e do Doce, a cara que é a de todos nós, entre o terror e o medo, a dor da perda e o horror dos escombros. A arte é o espelho no qual vemos, olho no olho, a cara e a coragem que nos restam diante do caos”.
Agridoce em Congonhas
Dez meses após a tragédia histórica, o Museu de Congonhas recebe uma exposição audaciosa, que une arte e realidade: AGRIDOCE. Realizada pelo sul-africano Haroon Gunn-Salie, primeiro artista estrangeiro a expor no novo museu, a instalação tem como proposta resgatar a tragédia ocorrida na região de Mariana, em novembro de 2015, sob a ótica da arte e levantar provocações sobre as respostas que ela pode trazer à vida real. A exposição foi aberta ao público no domingo, 4 de setembro, e fica em cartaz até março de 2017.
Entre fotos e vídeos que retratam as consequências do incidente, o público terá contato com a estrutura de uma casa real, extraída do distrito de Paracatu de Baixo, e reconstruída dentro da galeria. O artista propõe também uma obra inédita em sua montagem mineira, criada exclusivamente para Congonhas. O público verá na galeria as consequências de um eventual desastre ambiental diante de um dos mais importantes patrimônios culturais do país, os profetas de Aleijadinho, marco da cidade de Congonhas.
Logo após o desastre, Haroon Gunn-Salie, artista plástico sul-africano radicado no Brasil, passou por uma imersão no que sobrou do lugar soterrado e estabeleceu contato com as pessoas que viviam por ali - 19 morreram no desastre e centenas ficaram desabrigadas. Durante esse período, ele conheceu a família de Aparecida Marcelino, uma mulher de 46 anos que trabalha como faxineira em uma escola de Mariana. Aparecida morava em sua casa com três filhos, de 18, 17 e 12 anos, e perdeu tudo no desastre.
A partir do contato que teve com essa família, Haroon, que estava no Brasil com o objetivo de realizar uma exposição de trabalho inédito – ele foi selecionado para o 1º Prêmio SP-Arte/Videobrasil – decidiu fazer daquela casa, daquele local, objeto de sua nova instalação. Para isso, contou com o apoio da família e, em um trabalho minucioso, desconstruiu a casa do local real e a transportou para dentro de uma galeria, em São Paulo. A exposição, que ficou em cartaz na capital paulista de abril a junho, chega pela primeira vez a Minas Gerais.Com o objetivo de manter a exposição como um espaço ativo, além da casa da família Marcelino, Haroon traz uma nova proposta artística de diálogo entre o desastre das barragens e a cidade de Congonhas, que promete ser a grande novidade. Ele criou réplicas das esculturas dos 12 profetas do mestre Aleijadinho, obra-prima do Barroco, e irá submetê-las aos efeitos de um desastre nas proporções do ocorrido em Mariana.
“O objetivo é provocar o público sobre como seriam os efeitos sociais e históricos de um desastre desses se, ao invés de uma comunidade humilde como a de Paracatu de Baixo, a lama acometesse patrimônios históricos como a cidade de Congonhas. Como seria a reação das autoridades? Como seria a reação da população?”. Com essa proposta, serão exibidos pedaços e fragmentos das esculturas de Aleijadinho em meio à lama e ao caos de um hipotético rompimento de uma das barragens que cercam a cidade.
Haroon Gunn-Salie
Deslocamento forçado, desterramento, trauma, narrativa oral e história são os temas recorrentes na obra do jovem artista que despontou no cenário artístico internacional com seu trabalho de graduação em 2012. Intitulado Witness (Testemunha), a instalação site-specific relatava e atualizava a história dos antigos residentes do District Six em Cape Town, removidos à força durante o Apartheid. Este primeiro corpo de trabalho é profundamente autobiográfico: Gunn-Salie chegou a ser preso, quando ainda era um recém-nascido, junto com a mãe, ativista política antiapartheid, falsamente acusada de um atentado. Esses primeiros anos de sua vida, passados na clandestinidade da resistência política, foram a ele recontados pelos pais. A partir dessa experiência de uma memória construída por narrativas orais e subjetivas, ele adotou a noção de observador participativo, que passou a informar sua arte. Graduado em Escultura, Gunn-Salie adotou a prática colaborativa como uma metodologia na qual a obra de arte é concebida e executada a partir do diálogo intenso e da ação coletiva da comunidade, uma tendência que a crítica britânica Claire Bishop denominou virada social (social turn).
Sobre o Museu de Congonhas
Inaugurado em dezembro de 2015, o Museu de Congonhas foi construído ao lado do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, a partir de um projeto do arquiteto Gustavo Penna. O espaço é o primeiro museu de sítio do Brasil, ou seja, ele se propõe a explicar a história e as tradições da cidade e da região que estão no seu entorno. O Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, ao qual o Museu dedica sua principal atenção, está localizado no Morro do Maranhão, na zona urbana de Congonhas. Sua construção teve início em 1757 e se estendeu até o começo do século XIX. Trata-se de um conjunto arquitetônico e paisagístico formado pela Basílica, escadaria em terraços decorada por esculturas dos 12 profetas em pedra-sabão e seis capelas com cenas da Via Sacra, contendo 64 esculturas em cedro em tamanho natural. No conjunto, trabalharam os artistas de maior destaque do período, como o escultor Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), e o pintor Manoel da Costa Athaíde (1760-1830). É monumento mundial da Unesco.